RESUMO
A proposta aqui apresentada, condensada no conceito de Corpomídia, trata do corpo fora do modelo da caixa preta, que o divulga como o meio onde uma informação adentra (input), é nele processada, e dele sai para o mundo (output). Corpomídia nasce da hipótese de que tudo o que é vivo existe como resultado sempre parcial de uma condição co-evolutiva; e apoia-se em outros entendimentos do binômio dentro/fora, que modificam a própria noção de fronteira.
A multiplicidade de suas abordagens faz do corpo um assunto de tratamento difícil e pede por uma metodologia de investigação que misture fontes acadêmicas e literárias com informações colhidas em jornais e revistas do cotidiano. A complexificação da cena contemporânea pede por instrumentos teóricos que dêem conta da sua plasticidade, em contínuo processo de produção de geografias intersticiais.
O homem já tinha olhos quando não passava de uma gosma no fundo do mar - e, provavelmente seja essa a razão pela qual lava os olhos com água salgada quando chora. E foi a possibilidade de olhar para dentro do corpo que rendeu conhecimentos que deveriam ter aposentado verdades antigas. Todavia, infelizmente a experiência vem demonstrando que concepções científicas inadequadas têm vida própria.
Abrigos muito populosos tendem a produzir imobilismos. Talvez seja por esse motivo que consensos demoram a ser abandonados. O eco entre idéias carrega a falsa sensação de certeza, essa vizinha habitual da verdade – o que explica a lerdeza da transformação nas grandes comunidades que comungam dos mesmos pressupostos. Todo aquele para quem os vínculos humanos constituem assunto de interesse chega, mais cedo ou mais tarde, à tarefa de enfrentar o corpo como questão. No momento em que isso ocorre, sugere-se uma investigação com uma lógica brotada de conexões (Sodré, 2002) para transgredir as culturas bibliográficas que delimitam territórios e bloqueiam o acesso de estrangeiros a seus domínios. Este texto, porque considera insustentável a demarcação de geografias epistemológicas intransigentes, propõe uma ação de contaminação cultural e dela nasce voluntariamente mestiço.
Corpo, mente, movimento
O mais freqüente, quando o assunto é o corpo humano, tem sido começar por Descartes e suas duas rés (extensa, a máquina física reflexa/ pensante, a máquina cognitiva não-física). Porém, muito antes dele, Platão (428 – 348 a.C) já havia formulado uma proposta, forte a ponto de ainda sobreviver entre nós. Quando diz, no Phaedrus, que a essência da alma é gerar movimento, trata o corpo como aquilo que precisa de algo, que ele mesmo não é, para se tornar vivo e humano. Na sua descrição, o movimento necessita ser ativado, o que ocorre a partir de uma fonte interna ou externa. Platão é claro: só pode ser considerado vivo o corpo movido pela força interna (que nomeia de alma), ela, sim, imortal. Quanto ao corpo que se move por ação de uma fonte externa, como não tem alma, não pode ser considerado vivo nem humano. A noção do corpo como recipiente onde elementos se transmutam encontra-se também nos alquimistas (Gasc, 1987), que atribuíam ao corpo humano a propriedade de transformar comida em sabedoria e fizeram deste o modelo para a transformação de metal em ouro.
Em outra perspectiva, descarta-se entendimentos do corpo como algo ao qual se agregam conteúdos. A coleção de informações que dá nascimento ao corpo humano o faz quando se organiza como uma mídia dos processos sempre em curso - daí a transitoriedade da sua forma. Por isso, olhar o corpo representa sempre olhar o ambiente que constitui a sua materialidade. O verbo precisa estar no presente (constitui) para dar ênfase ao caráter processual dessas operações, em fluxo inestancável, que fazem descer as antigas separações entre natureza e cultura pela enxurrada que a sua argumentação teórica promove.
Seu corpo não é e não poderia ser um recipiente para uma mente desencarnada. O conceito de mente separada do corpo é um conceito metafórico. Pode ser uma conseqüência, como foi para Descartes, da metáfora do Conhecer é Ver, a qual, por sua vez, nasce da experiência embodied (materializada) desde o nascimento, de ganhar conhecimento através da visão (Lakoff e Johnson, 1999: 561-562). A compreensão do corpo vivo como sendo o que possui acionamento interno do seu movimento (o seu diferencial) implicou na necessidade de buscar a localização desse comando (a alma platônica, a mente cartesiana) dentro do corpo. Para Galeno (c.130 - c.200), por exemplo, a alma ficava no encéfalo, e os nervos saíam de lá ou da coluna vertebral para controlar os músculos, que considerava como sendo os instrumentos do movimento voluntário.
A proposta de um corpo humano dotado de algo que o distingue de todos os outros irá atravessar muitos séculos e impregnar as mais distintas formulações filosóficas. Nelas, o corpo será apresentado como aquilo que recebe esse comando quando nasce e é por ele abandonado na morte (quando se torna inerte, não vivo, sem movimento). Até mesmo Hal 9000, o computador criado por Stanley Kubrick em "2001, uma Odisséia no Espaço" (1968), repetiu algumas vezes, com uma voz cada vez mais pausada, antes de ser definitivamente desligado: I'm afraid, Dave. My mind is going, Dave. I can feel it. (Tenho medo, Dave. Minha mente está desaparecendo, Dave. Posso sentir isso acontecendo). A questão do movimento se mostra crucial quando o assunto é corpo. Todavia, estivemos sempre tão absorvidos pela aceitação dos cinco sentidos como o teste central do que nos cerca que não nos demos conta de que faltava arrolar o movimento nesse mesmo conjunto de características do corpo humano.
Para colocar como J.J.Gibson alguns anos atrás, é preciso se mover para poder perceber, mas também perceber para poder se movimentar (Ginsburg, 2001: 70). Ler o corpo significa reconstruí-lo sempre. Não há um corpo único, à espera de dissecação para, então, deixar de ser um objeto mudo porque terá as suas partes identificada e descritas. Não têm sido poupados esforços na busca de argumentos para derrubar a idéia de corpo imutável e dado a priori. A inteligibilidade científica, como se sabe, também depende do compartilhamento das referências que guiaram a sua constituição. À luz da fenomenologia, por exemplo, tem sido propostas novas nomenclaturas como a da corporalidade ao invés de corpo (Bernard, 2001), na tentativa de afirmar a plasticidade do fluxo de informações e negar a metáfora do organismo como aquilo que é inato e comum a todos. Emprestando uma metáfora de outra natureza, neste caso do âmbito jurídico, Jean Luc-Nancy (2001) proporá a palavra corpus ao invés de corpo, salientando o corpo como uma ação e não como produto. Falar de corpus, segundo Nancy, é reconhecer que cada corpo representa um caso particular, ou seja, a cada corpo corresponderia uma jurisdição própria. Vale lembrar que, ao tempo de Vesalius, aquele que havia refutado Galeno, o termo em circulação nas universidades européias era corpus.
A inoculação do Corpomídia
Ao invés de um resultado biológico, uma mídia. Esta proposta deseja ser inoculada ao modo daquelas doenças transmissíveis por uma causa comum e geral como a alteração do ar. Pois ambiciona se tornar um tipo de vírus que torne os sujeitos inoculados imunes a conceitos de corpo fora da co-evolução. A varíola produziu um primeiro gesto, desconcertante para o século XVIII, por introduzir o mal no sangue através de incisões na pele. Sem dúvida, é preciso uma mudança na percepção e na representação do corpo para tornar aceitável um gesto tão alarmante como este da inoculação do mal. Certamente, é preciso um deslocamento de outras lógicas, como aquela do funcionamento e do estado dos órgãos, para que a apreciação do contato seja modificada (Vigarello, 2002: 14). O valor simbólico da idéia de inoculação, um método para defender grupos humanos, põe em cheque a compreensão arcaica dos órgãos. Em primeiro lugar, não se baseia na luta do mal contra o mal que, então, se anulariam. A inoculação provoca uma desordem, causa um pequeno mal transitório, uma perturbação dirigida (Vigarello), e resulta em uma proteção para o corpo.
Não mais um envelopamento do corpo com bandagens, panos, couros, invólucros protetores, mas um corpo protegido pelas suas forças internas. A idéia de inoculação promove uma reorientação na imagem do corpo. O conceito de Corpomídia também propõe uma reorientação às tradicionais explicações de veículo e meio. Não mais um corpo como uma caixa preta onde adentram os inputs do ambiente, que lá são processados e, em seguida, devolvidos como resposta (outputs). Mas um corpo que não existe senão como trânsito, em tempo real das suas negociações com o que o cerca. Um corpo que apenas está. Nem só biologia, nem só cultura. Charles Darwin, no seu livro divisor de águas, Sobre a Origem das Espécies, publicado em 1859, apresenta argumentos que provam que a vida surgiu, se estabilizou e ganhou permanência por efeito da seleção natural. A antropologia tradicional, porque entendia cultura como uma forma de socialização tipicamente humana, divergia do conceito que circula hoje, graças aos avanços da etologia contemporânea, e que entende comportamento cultural como aquele que se estabiliza por transmissão social.
Portanto, não é determinado exclusivamente pela genética nem pelo ambiente. A cultura não nasce por um rompimento com a condição animal, mas sim como fruto de uma continuidade ininterrupta das características comuns a todos os seres vivos. E a seleção natural explica porque algumas informações sobrevivem enquanto outras desaparecem nesse fluxo ininterrupto.
Corpomídia e embodiment
George Lakoff e Mark Johnson (1999) defendem que a verdade não resulta simplesmente de um correto ajustamento entre palavras e o mundo porque há um corpo se interpondo nessa relação. Sustentam que os conceitos são encarnados e não imaterialidades produzidas pela atividade do raciocínio. Os mesmos mecanismos neuronais e cognitivos que nos permitem perceber o que está ao nosso redor criam em nós conceitos e raciocínios. Ou seja, para entender porque e como raciocinamos precisamos saber do papel que desempenham nesse processo o nosso sistema sensório-motor. A razão não é desencarnada nem tampouco transcendente, universal; ao contrário do que se tornou consensual, ela não é sequer consciente e sim, na sua maior parte, inconsciente; também não é literal, e sim, altamente metafórica e imaginativa; e não é neutra, mas sim carregada de emoção.
Compreendendo que razão e emoção fazem parte da mesma ação de conhecer, que natureza não se contrapõe à cultura, caminha-se com mais conforto para a hipótese de que o corpo é, então, aquilo que a evolução permitiu que ele fosse - uma seleção entre as informações disponíveis no universo, operada ao longo de milhões de anos, desde que a vida surgiu. Aparentemente estável, pois seu design se mantém há um longo tempo, resultou de um tipo de acordo pautado pela sua plasticidade. O corpo é uma mídia, um processo constante, permanente e transitório, de acomodamento dessas trocas inestancáveis com o ambiente onde vive. Mudar o nossos relacionamentos com os outros e com o mundo é sempre um processo encarnado. Como esse, que estamos realizando em conjunto, aqui e agora.
Bibliografia Básica:
Bernard, Michel (2001). De la Création Chorégraphique. Paris: Centre
Nactional de la Danse.
Bernard, Michel (2ed, 1986). L' Expressivité du corps. Paris: Chiron.
Blackmore, Susan (1999). The Meme Machine. Oxford: Oxford University Press.
Certeau, Michel de (2001). A Cultura no plural - 2ª edição. Tradução de Enid
Abreu Dobranszky. São Paulo: Papirus Editora / Travessia do século.
Churchland, Patricia S. e Terence J. Sejnowski (1994). The Computational
Brain. Cambridge e Londres: The MIT Press.
Ginsburgs, Carl (2001). Mind and Motion. A Review of Alain Berthoz¹s The
Brain¹s Sense of Movement². In Journal of Conciousness Studies, Vol. 8. No.
11, pp. 65-73.
Lakoff, George e Mark Johnson (1999). Philosophy in the Flesh. The Embodied
Mind and Its Challenge to Western Thought. New York: Basic Books.
------------------- (1980). Metaphors we live by. Chicago: University of
Chicago Press.
Llinás, Rodolfo (2002). I of the Vortex. Massachussets, Londres: Bradford
Books.
Nancy, Jean-Luc (2001). Corpus. Paris: PUF, .
Schlander, Judith (1995). Les Métaphores de l' organisme. Paris: Harmattan.
Sodré, Muniz (2002). A forma de vida da mídia. Entrevista à Revista Fapesp,
pp.86-89.
------------------ (2002). Antropológica do Espelho. Rio de Janeiro:
Vozes/CNPq.
Steward, Edward C. (2001). ³Culture of the Mind. On the origins of meaning
and emotion², in Culture in the Communication Age, pp. 9-30. Londres e Nova
York: Routledge.
Varela, Francisco e MArk R. Anspach (1994). ³The Body Thinks: The Immune
System in the Process of Somatic Individuation², in Materialities of
Communication, ed. Hans Ulrich Gumbrecht e K. Ludwig Pfeiffer. Standford:
Standford University Press.
Vigarello, Georges (2002). ³Inocular para Proteger: A Inoculação da Varíola
e a Imagem do Corpo² em Corpo & Cultura, vol. 25, pgs. 13-22. São Paulo:
Educ.
Weiss, Gail, (1999). body images. New York e Londres: Routledge.
Helena Katz é pesquisadora e professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Revista TFC. Link aqui.
A proposta aqui apresentada, condensada no conceito de Corpomídia, trata do corpo fora do modelo da caixa preta, que o divulga como o meio onde uma informação adentra (input), é nele processada, e dele sai para o mundo (output). Corpomídia nasce da hipótese de que tudo o que é vivo existe como resultado sempre parcial de uma condição co-evolutiva; e apoia-se em outros entendimentos do binômio dentro/fora, que modificam a própria noção de fronteira.
A multiplicidade de suas abordagens faz do corpo um assunto de tratamento difícil e pede por uma metodologia de investigação que misture fontes acadêmicas e literárias com informações colhidas em jornais e revistas do cotidiano. A complexificação da cena contemporânea pede por instrumentos teóricos que dêem conta da sua plasticidade, em contínuo processo de produção de geografias intersticiais.
O homem já tinha olhos quando não passava de uma gosma no fundo do mar - e, provavelmente seja essa a razão pela qual lava os olhos com água salgada quando chora. E foi a possibilidade de olhar para dentro do corpo que rendeu conhecimentos que deveriam ter aposentado verdades antigas. Todavia, infelizmente a experiência vem demonstrando que concepções científicas inadequadas têm vida própria.
Abrigos muito populosos tendem a produzir imobilismos. Talvez seja por esse motivo que consensos demoram a ser abandonados. O eco entre idéias carrega a falsa sensação de certeza, essa vizinha habitual da verdade – o que explica a lerdeza da transformação nas grandes comunidades que comungam dos mesmos pressupostos. Todo aquele para quem os vínculos humanos constituem assunto de interesse chega, mais cedo ou mais tarde, à tarefa de enfrentar o corpo como questão. No momento em que isso ocorre, sugere-se uma investigação com uma lógica brotada de conexões (Sodré, 2002) para transgredir as culturas bibliográficas que delimitam territórios e bloqueiam o acesso de estrangeiros a seus domínios. Este texto, porque considera insustentável a demarcação de geografias epistemológicas intransigentes, propõe uma ação de contaminação cultural e dela nasce voluntariamente mestiço.
Corpo, mente, movimento
O mais freqüente, quando o assunto é o corpo humano, tem sido começar por Descartes e suas duas rés (extensa, a máquina física reflexa/ pensante, a máquina cognitiva não-física). Porém, muito antes dele, Platão (428 – 348 a.C) já havia formulado uma proposta, forte a ponto de ainda sobreviver entre nós. Quando diz, no Phaedrus, que a essência da alma é gerar movimento, trata o corpo como aquilo que precisa de algo, que ele mesmo não é, para se tornar vivo e humano. Na sua descrição, o movimento necessita ser ativado, o que ocorre a partir de uma fonte interna ou externa. Platão é claro: só pode ser considerado vivo o corpo movido pela força interna (que nomeia de alma), ela, sim, imortal. Quanto ao corpo que se move por ação de uma fonte externa, como não tem alma, não pode ser considerado vivo nem humano. A noção do corpo como recipiente onde elementos se transmutam encontra-se também nos alquimistas (Gasc, 1987), que atribuíam ao corpo humano a propriedade de transformar comida em sabedoria e fizeram deste o modelo para a transformação de metal em ouro.
Em outra perspectiva, descarta-se entendimentos do corpo como algo ao qual se agregam conteúdos. A coleção de informações que dá nascimento ao corpo humano o faz quando se organiza como uma mídia dos processos sempre em curso - daí a transitoriedade da sua forma. Por isso, olhar o corpo representa sempre olhar o ambiente que constitui a sua materialidade. O verbo precisa estar no presente (constitui) para dar ênfase ao caráter processual dessas operações, em fluxo inestancável, que fazem descer as antigas separações entre natureza e cultura pela enxurrada que a sua argumentação teórica promove.
Seu corpo não é e não poderia ser um recipiente para uma mente desencarnada. O conceito de mente separada do corpo é um conceito metafórico. Pode ser uma conseqüência, como foi para Descartes, da metáfora do Conhecer é Ver, a qual, por sua vez, nasce da experiência embodied (materializada) desde o nascimento, de ganhar conhecimento através da visão (Lakoff e Johnson, 1999: 561-562). A compreensão do corpo vivo como sendo o que possui acionamento interno do seu movimento (o seu diferencial) implicou na necessidade de buscar a localização desse comando (a alma platônica, a mente cartesiana) dentro do corpo. Para Galeno (c.130 - c.200), por exemplo, a alma ficava no encéfalo, e os nervos saíam de lá ou da coluna vertebral para controlar os músculos, que considerava como sendo os instrumentos do movimento voluntário.
A proposta de um corpo humano dotado de algo que o distingue de todos os outros irá atravessar muitos séculos e impregnar as mais distintas formulações filosóficas. Nelas, o corpo será apresentado como aquilo que recebe esse comando quando nasce e é por ele abandonado na morte (quando se torna inerte, não vivo, sem movimento). Até mesmo Hal 9000, o computador criado por Stanley Kubrick em "2001, uma Odisséia no Espaço" (1968), repetiu algumas vezes, com uma voz cada vez mais pausada, antes de ser definitivamente desligado: I'm afraid, Dave. My mind is going, Dave. I can feel it. (Tenho medo, Dave. Minha mente está desaparecendo, Dave. Posso sentir isso acontecendo). A questão do movimento se mostra crucial quando o assunto é corpo. Todavia, estivemos sempre tão absorvidos pela aceitação dos cinco sentidos como o teste central do que nos cerca que não nos demos conta de que faltava arrolar o movimento nesse mesmo conjunto de características do corpo humano.
Para colocar como J.J.Gibson alguns anos atrás, é preciso se mover para poder perceber, mas também perceber para poder se movimentar (Ginsburg, 2001: 70). Ler o corpo significa reconstruí-lo sempre. Não há um corpo único, à espera de dissecação para, então, deixar de ser um objeto mudo porque terá as suas partes identificada e descritas. Não têm sido poupados esforços na busca de argumentos para derrubar a idéia de corpo imutável e dado a priori. A inteligibilidade científica, como se sabe, também depende do compartilhamento das referências que guiaram a sua constituição. À luz da fenomenologia, por exemplo, tem sido propostas novas nomenclaturas como a da corporalidade ao invés de corpo (Bernard, 2001), na tentativa de afirmar a plasticidade do fluxo de informações e negar a metáfora do organismo como aquilo que é inato e comum a todos. Emprestando uma metáfora de outra natureza, neste caso do âmbito jurídico, Jean Luc-Nancy (2001) proporá a palavra corpus ao invés de corpo, salientando o corpo como uma ação e não como produto. Falar de corpus, segundo Nancy, é reconhecer que cada corpo representa um caso particular, ou seja, a cada corpo corresponderia uma jurisdição própria. Vale lembrar que, ao tempo de Vesalius, aquele que havia refutado Galeno, o termo em circulação nas universidades européias era corpus.
A inoculação do Corpomídia
Ao invés de um resultado biológico, uma mídia. Esta proposta deseja ser inoculada ao modo daquelas doenças transmissíveis por uma causa comum e geral como a alteração do ar. Pois ambiciona se tornar um tipo de vírus que torne os sujeitos inoculados imunes a conceitos de corpo fora da co-evolução. A varíola produziu um primeiro gesto, desconcertante para o século XVIII, por introduzir o mal no sangue através de incisões na pele. Sem dúvida, é preciso uma mudança na percepção e na representação do corpo para tornar aceitável um gesto tão alarmante como este da inoculação do mal. Certamente, é preciso um deslocamento de outras lógicas, como aquela do funcionamento e do estado dos órgãos, para que a apreciação do contato seja modificada (Vigarello, 2002: 14). O valor simbólico da idéia de inoculação, um método para defender grupos humanos, põe em cheque a compreensão arcaica dos órgãos. Em primeiro lugar, não se baseia na luta do mal contra o mal que, então, se anulariam. A inoculação provoca uma desordem, causa um pequeno mal transitório, uma perturbação dirigida (Vigarello), e resulta em uma proteção para o corpo.
Não mais um envelopamento do corpo com bandagens, panos, couros, invólucros protetores, mas um corpo protegido pelas suas forças internas. A idéia de inoculação promove uma reorientação na imagem do corpo. O conceito de Corpomídia também propõe uma reorientação às tradicionais explicações de veículo e meio. Não mais um corpo como uma caixa preta onde adentram os inputs do ambiente, que lá são processados e, em seguida, devolvidos como resposta (outputs). Mas um corpo que não existe senão como trânsito, em tempo real das suas negociações com o que o cerca. Um corpo que apenas está. Nem só biologia, nem só cultura. Charles Darwin, no seu livro divisor de águas, Sobre a Origem das Espécies, publicado em 1859, apresenta argumentos que provam que a vida surgiu, se estabilizou e ganhou permanência por efeito da seleção natural. A antropologia tradicional, porque entendia cultura como uma forma de socialização tipicamente humana, divergia do conceito que circula hoje, graças aos avanços da etologia contemporânea, e que entende comportamento cultural como aquele que se estabiliza por transmissão social.
Portanto, não é determinado exclusivamente pela genética nem pelo ambiente. A cultura não nasce por um rompimento com a condição animal, mas sim como fruto de uma continuidade ininterrupta das características comuns a todos os seres vivos. E a seleção natural explica porque algumas informações sobrevivem enquanto outras desaparecem nesse fluxo ininterrupto.
Corpomídia e embodiment
George Lakoff e Mark Johnson (1999) defendem que a verdade não resulta simplesmente de um correto ajustamento entre palavras e o mundo porque há um corpo se interpondo nessa relação. Sustentam que os conceitos são encarnados e não imaterialidades produzidas pela atividade do raciocínio. Os mesmos mecanismos neuronais e cognitivos que nos permitem perceber o que está ao nosso redor criam em nós conceitos e raciocínios. Ou seja, para entender porque e como raciocinamos precisamos saber do papel que desempenham nesse processo o nosso sistema sensório-motor. A razão não é desencarnada nem tampouco transcendente, universal; ao contrário do que se tornou consensual, ela não é sequer consciente e sim, na sua maior parte, inconsciente; também não é literal, e sim, altamente metafórica e imaginativa; e não é neutra, mas sim carregada de emoção.
Compreendendo que razão e emoção fazem parte da mesma ação de conhecer, que natureza não se contrapõe à cultura, caminha-se com mais conforto para a hipótese de que o corpo é, então, aquilo que a evolução permitiu que ele fosse - uma seleção entre as informações disponíveis no universo, operada ao longo de milhões de anos, desde que a vida surgiu. Aparentemente estável, pois seu design se mantém há um longo tempo, resultou de um tipo de acordo pautado pela sua plasticidade. O corpo é uma mídia, um processo constante, permanente e transitório, de acomodamento dessas trocas inestancáveis com o ambiente onde vive. Mudar o nossos relacionamentos com os outros e com o mundo é sempre um processo encarnado. Como esse, que estamos realizando em conjunto, aqui e agora.
Bibliografia Básica:
Bernard, Michel (2001). De la Création Chorégraphique. Paris: Centre
Nactional de la Danse.
Bernard, Michel (2ed, 1986). L' Expressivité du corps. Paris: Chiron.
Blackmore, Susan (1999). The Meme Machine. Oxford: Oxford University Press.
Certeau, Michel de (2001). A Cultura no plural - 2ª edição. Tradução de Enid
Abreu Dobranszky. São Paulo: Papirus Editora / Travessia do século.
Churchland, Patricia S. e Terence J. Sejnowski (1994). The Computational
Brain. Cambridge e Londres: The MIT Press.
Ginsburgs, Carl (2001). Mind and Motion. A Review of Alain Berthoz¹s The
Brain¹s Sense of Movement². In Journal of Conciousness Studies, Vol. 8. No.
11, pp. 65-73.
Lakoff, George e Mark Johnson (1999). Philosophy in the Flesh. The Embodied
Mind and Its Challenge to Western Thought. New York: Basic Books.
------------------- (1980). Metaphors we live by. Chicago: University of
Chicago Press.
Llinás, Rodolfo (2002). I of the Vortex. Massachussets, Londres: Bradford
Books.
Nancy, Jean-Luc (2001). Corpus. Paris: PUF, .
Schlander, Judith (1995). Les Métaphores de l' organisme. Paris: Harmattan.
Sodré, Muniz (2002). A forma de vida da mídia. Entrevista à Revista Fapesp,
pp.86-89.
------------------ (2002). Antropológica do Espelho. Rio de Janeiro:
Vozes/CNPq.
Steward, Edward C. (2001). ³Culture of the Mind. On the origins of meaning
and emotion², in Culture in the Communication Age, pp. 9-30. Londres e Nova
York: Routledge.
Varela, Francisco e MArk R. Anspach (1994). ³The Body Thinks: The Immune
System in the Process of Somatic Individuation², in Materialities of
Communication, ed. Hans Ulrich Gumbrecht e K. Ludwig Pfeiffer. Standford:
Standford University Press.
Vigarello, Georges (2002). ³Inocular para Proteger: A Inoculação da Varíola
e a Imagem do Corpo² em Corpo & Cultura, vol. 25, pgs. 13-22. São Paulo:
Educ.
Weiss, Gail, (1999). body images. New York e Londres: Routledge.
Helena Katz é pesquisadora e professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Revista TFC. Link aqui.
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