quarta-feira, 6 de abril de 2011

A desfronteirização das metáforas ontológicas no corpo artista, por Christine Greiner

RESUMO

Partindo da proposta de que o corpo artista tem aptidão para perverter o percurso cognitivo das metáforas de orientação (Lakoff-Johnson), como nas experiências de Antonin Artaud, Vaslav Nijinsky e Tatsumi Hijikata, a autora observa que as metáforas da morte das quais emerge o corpo em estado de crise, parecem se organizar com bastante reincidência a partir de três ações primárias: esvaziar (o corpo de dentro), inverter (o corpo casca) e cortar (o corpo de conexões). Indo além da obra destes artistas, Greiner aponta caminhos para a constante (re)construção de significados no corpo do artista.

Há cerca de vinte anos, os pesquisadores George Lakoff e Mark Johnson (1980 e 1999) começaram a estudar o que chamaram de metáforas de orientação (espaço-temporal). Segundo estes filósofos-linguistas, é a partir delas que o mundo se organiza e se internaliza nos corpos. Esta comunicação parte da proposta de que o corpo artista tem aptidão para perverter esse percurso cognitivo, arriscando muitas vezes a sua estabilidade como organismo. Para estudar esse processo que desfronteiriza acionamentos e conexões, são propostas três possibilidades de mapas filosófico-anatômicos que seriam, de fato, projetos cada qual com seu design de movimento: o corpo visceral (corpo de dentro), o corpo casca (corpo de fora) e o corpo juntas (corpo de conexões).

A idéia partiu de algumas experiências específicas como as de Antonin Artaud, Vaslav Nijinsky e Tatsumi Hijikata para de algum modo abstraí-las, num segundo momento, buscando novas conexões no mundo contemporâneo. Evidentemente, este texto é apenas um fragmento de uma pesquisa mais longa, cujo objetivo é reconhecer algumas representações de corpos em estado de crise, especificamente aquelas que investigam as metáforas da morte. Muitas delas parecem da mesma família, mas nem sempre partilham uma relação de "influência". As fontes são dificilmente detectadas com exatidão e as relações são bem mais complexas do que ações diretas de causa e efeito. No discurso de muitos artistas, nem toda citação é clara. Trata-se de uma negligência própria ao processo de criação, quando espasmos devoram informações de fora e de dentro do corpo, de modo não seqüencial. Nestes momentos, o que interessa é o ato, a poesia, no sentido definido pelo surrealista Takiguchi Shûzô: "A poesia não é uma crença. Nem uma lógica. A poesia é ato. O ato que dispensa todos os outros atos. O instante onde a sombra do sonho parece a sombra do poema."

Mas isso não significa que tudo seja aleatório, sem construção, aproximando-se da antiga crença de que o artista apenas sente e não racionaliza. É preciso tomar cuidado com as armadilhas das oposições simplórias. As dificuldades, evidentemente, são muitas e já nascem de imediato. Quando um corpo se encontra em estado de crise, paradoxalmente, cria um universo simbólico mas, ao mesmo tempo, rompe a membrana imaginária que, de algum modo, separava os sistemas arte e vida. Embora alguns artistas já anunciassem mudanças importantes, tais fronteiras ainda pareciam um alívio necessário para historiadores da arte, críticos e para o público em geral. Mas a crise que não é apenas temática, fere e perverte a materialidade do sistema onde se encontra, exigindo uma configuração lógica distinta para ser observada. Os limites são de uma plasticidade intolerável.

Não há, por exemplo, dualidades onde cada instância permaneça em seu devido lugar, preservada, como é típico das classificações sujeito e objeto, universo real e universo simbólico, corpo e corporalidade. Como tantas vezes já me perguntaram, devo esclarecer que, de algum modo, esta crise não está apartada de outras (de caráter social, político, filosófico, epistemológico e, muitas vezes, psicológico), mas se mantém absolutamente singular porque o seu estado de existência se organiza como representação da metáfora da morte. Ao invés de se constituir como um alívio, a metáfora neste caso pode ser (e quase sempre é) de uma crueldade extrema. A sua essência é sempre entender e experienciar um tipo de coisa em termos de outra, como explicaram Lakoff e Johnson (1980, 1999).

A obra destes filósofos-linguistas é fundamental porque explica a metáfora como operação cognitiva e não apenas como figura de linguagem como estudamos no colégio. Mas para analisar este caso do corpo em crise e suas metáforas, a questão que move a discussão está em como se realiza a operação. A morte, para estes artistas, pode ser entendida de modos diferentes, a partir de ações distintas, mas amparada irremediavelmente pela sombra da decomposição de tudo que se insinua estável, pronto, digerível. Buscando uma aproximação maior com alguns desses procedimentos, observo que as metáforas da morte das quais emerge o corpo em estado de crise, parecem se organizar com bastante reincidência a partir de três ações que por isso mesmo (e apenas neste contexto específico), podem ser consideradas ações primárias: esvaziar (o corpo de dentro), inverter (o corpo casca) e cortar(o corpo de conexões). Estas se desdobram em muitas outras que podem ser identificadas como possíveis versões e gradações das primeiras como dissecar, exceder, transbordar, inanimar, desestabilizar, desconstruir, desconectar, desarticular e romper. Daí as referências a Artaud e a sua proposta de esvaziar o corpo dos automatismos dos órgãos, a Nijinsky e a inversão dos limites, o reconhecimento da pele de dentro, do limiar entre sanidade e loucura; e a Hijikata quando propõe romper as conexões, tanto no sentido das articulações do corpo, como naquele das articulações do pensamento.

Junto às ações, emergem imagens, ora mais, ora menos estáveis. Estas não são visíveis como pinturas e fotografias. São imagens mentais corporificadas. Se vão ou não ser implementadas em produtos diversos
(quadros, danças, poemas etc) e como isso vai acontecer, já é uma segunda parte da história que se refere a cadeias evolutivas de processos anteriores já dissipados pelo tempo.A proposta principal desta pesquisa é reconhecer portanto alguns desses processos de representação e estudá-los com a convicção de que não se trata de produtos, conceitos ou modelos reproduzíveis, mas sim de uma espécie de "operadores" aptos a desestabilizar os diversos sistemas onde podem, precariamente, ser identificados.

É preciso tomar cuidado porque, apesar da tentação, não se pode considerar esses operadores como matrizes. A idéia tradicional de matriz (algo dado a priori) é inapropriada para este estudo. O que parece possível, neste momento, é observar que tais operadores são perecíveis e fadados à própria corrosão, tornando-se visíveis apenas quando emergem os "estados de crise". Eles nascem da conexão dentro-fora, de um supostamente antes e depois de tudo como instâncias espaço-temporais que convivem de modo não antagônico nem determinista, a partir de eixos de ocorrência. A chave está na transgressão do que Lakoff e Johnson (1980) chamaram de metáforas ontológicas. Estas são quase sempre de natureza espaço-temporal, sugerindo noções de borda, começo, fim, dentro, fora, continuidade e assim por diante. Agindo incisivamente neste campo, a partir de ações primárias, alguns artistas construíram ambientes de experimentação e, muitas vezes, se deixaram consumir antes de ter uma forma reconhecível, habitualmente identificada como uma distinção evidente entre sujeito e objeto, artista e obra. Outros criadores padeceram depois, quando tudo parecia já ter acabado, à sombra da ilusão de algo pronto.

Esta condição precária de existência é própria à natureza do corpo e de suas habilidades sensório-motoras em todas as situações da vida cotidiana e não apenas durante os processos de criação artística. No entanto, quando se configura como um estado de pós-morte, como sugere o artista Jan Fabre, rompe padrões internalizados anteriormente. Lembra, muitas vezes, um estado entre o sono e a vigília, quando um corpo eternamente febril torna-se uma espécie de consciência amortecida da realidade. É quando se propõe uma nova anatomia e funcionalidade para o corpo que apenas ganha forma visível a partir dos movimentos que engendra. Está mais voltada à investigação das condições de percepção do que a essências formais ou à existência de categorias. É, portanto, um mapeamento anatômico mas que só pode ser identificado a partir de suas ações e imagens.

Não há qualquer esperança de completude ou determinação. Teorias de fundamentação semiótica e científico-filosófica que também estudam os processos de representação e de interiorização da informação em um corpo, ajudam a esclarecer esse processo de deterioração, já testado por tantos artistas geniais. O corpo em crise, evidentemente, não nasceu com o butô e os experimentos de Hijikata, nem com as frases-poemas-imagens que absorveu de Artaud e de outros (escritores, pintores, músicos, filósofos, fotógrafos, coreógrafos ...) com quem construiu um dos pensamentos mais desconcertantes do século XX. Surgiu muitos séculos antes e pereceu tantas vezes quantas se fez relembrar, podendo ser observado a partir de diferentes níveis de descrição nos quais me baseio para realizar a pesquisa.

Uma estranha temporalidade ronda os processos de aparente "recuperação" de antigos movimentos artísticos. O que se chama de radical, a partir do sentido de radix, explica Hal Foster (2001:2), tem a ver com "em direção à raiz". Radicalizar, neste sentido, seria estabelecer conexões latentes discerníveis a partir do deslocamento do objeto. É como se houvessem dois movimentos inseparáveis: o temporal que reconhece o passado no presente e o espacial que instaura um novo ambiente (rede de informação) para trabalhar, mas também age temporalmente, lançando presente e passado no futuro. Segundo Foster (op.cit:13), é sempre uma relação complexa entre antecipação e reconstrução. Fazendo uma analogia com os estudos de Sigmund Freud, o crítico lembra que um evento só é registrado através de outro que o
recodifica e é assim que chegamos a ser quem somos, a partir de ações retroativas (Nachtraglichkeit). Não há repetição, apenas reconstrução. A chave está nos modos de percepção e cognição e em como as ações se transformam a partir dos seus processos de comunicação.

De algum modo, em sua obra Rastros e Passos (2003), a crítica literária e teatral Berta Waldman discute de modo semelhante um exemplo, referente à interferência judaica no Brasil a partir da literatura, e propõe que há distinções importantes entre história e memória, sobretudo no que se refere ao passado. De acordo com a autora, a partir de estratégias muito particulares, a história jamais recupera o passado, mas rompe com ele o tempo todo, uma vez que o reconstitui usando os seus vestígios. Embora esta operação aconteça no presente, ela tem como partitura sempre uma ação que já ocorreu. No caso da memória, ela também traz de algum modo rastros de um tempo e de eventos que já passaram, mas o que parece tentar reconstituir é o próprio presente em processos incessantes de reatualização. Neste caso, não é o passado que se apresenta, mas as atualizações de seus percursos cognitivos. Isto quer dizer que o passado se atualiza nos estados presentes do corpo.

Esta seria outra chave importante que ajuda, desta vez, a identificar não apenas as ações que comunicam e os padrões que sobrevivem, mas as instabilidades, os processos de mudança e o colapso das certezas.

Bibliografia Básica:

Artaud, Antonin. Héliogabale ou L' Anarchiste Couronné. Paris: L' Imaginaire,
Gallimard, 1979.
Foster, Hal. The return of the real. New York: October Book, 1996.
Genet, Jean. Ouevres Complètes. Paris: Gallimard, 1951.
Hijikata Tatsumi. Butô-fu. Tóquio: Arquivo da Universidade Keio, 1970-1986.
Lakoff, G. e Mark Johnson. Metaphors we live by. New York, Basic Books,
1980.
_______________________Philosophy in the Flesh. The Embodied Mind and its
Challenge to Western Thought. New York, Basic Books, 1999.
Aslan Odette. Butô (s). Paris: CNRS, 2002.
Waldman, Berta. Passos e Rastros. São Paulo: Perspectiva, 2003.
Nijinsky, Vaslav. The Diary of Vaslav Nijinsky, ed Romola Nijinsky.
University of California Press, 1968.

Christine Greiner é pesquisadora e professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.



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